segunda-feira, 14 de junho de 2010

A (quase) maldição da Jabulani

Pode um beijo salvar uma nação?
Um beijo marca. Seja ele inocente, atrevido, molhado, paterno, roubado, escondido, violento ou suave, jamais passará incólume.
Um ósculo de Judas entregou Jesus aos inimigos que o levariam a morrer na cruz. Selou a despedida de Romeu e Julieta antes do mergulho nas sombras do suicídio na imortal obra de William Shakespeare. Despertou Branca de Neve. Transformou a foto de um marinheiro e uma enfermeira, em Nova Iorque, em 1945, em uma das imagens mais marcantes do pós-guerra.
Um beijo pode muito. E pode, sim, ter salvo o Brasil, o país do futebol, em 2010.
Quando tocou os lábios em uma bola de futebol, Kaká, meia da Seleção Brasileira, anulou um plano de vingança, o que, muito tempo depois, viria a ser conhecido como a maldição da Jabulani. Após receber críticas, do goleiro Julio César ao atacante Luis Fabiano, a bola nascida para brilhar na Copa do Mundo da África do Sul arquitetara seu plano maligno contra os detratores. E os resultados prometiam ser devastadores...
Antes, porém, de prosseguir, cabe uma explicação sobre bolas de futebol. Ninguém sabe ao certo como começou, se por um capricho dos deuses do futebol, alguma mandinga baiana ou mutação gerada ao longo dos anos e chutes. Fato é que as gorducinhas (aliás, elas adoram ser chamadas assim e quase murcharam quando Osmar Santos deixou de narrar jogos) têm uma sensibilidade, digamos, bastante peculiar. Não se incomodam de ser chutadas. Sabem ter nascido para ser parte do espetáculo e se orgulham ao ouvir denominações como ‘jogo de bola’, ‘bater uma bolinha’, entre tantas outras citações diretas.
Mas não se engane. Existem chutes e chutes. E ninguém melhor que uma bola de futebol para saber essa diferença. Uma batida de chapa, de peito de pé, de trivela, faz como cócegas em sua pele encouraçada. Sentem um prazer único ao viajar pelo ar em direção ao gol, em um passe perfeito ou rolando de pé em pé pelo gramado como em um tapete vermelho. Agora, quando levam um bicão... nem é preciso estender o comentário.
Diferente de suas irmãs, como as destinadas a esportes como vôlei, tênis, golfe, basquete, boliche e outras parentas, as bolas boleiras são verdadeiras estrelas planetárias e sabem muito bem disso. Estabelecem uma relação de cumplicidade com os craques, homens dotados do divino dom de transformar um chute potente em um afago, de mandá-las onde quiserem como se as colocassem com as mãos.
E é exatamente nesse ponto, nessa cumplicidade, ou falta dela, que elas se manifestam.
Não pergunte como, mas as bolas de futebol têm vontade própria e aprenderam a gozar de certa liberdade de movimentos. São seres inanimados? São. Mas, acredite se quiser, sabem como se mexer. Milimetricamente, é verdade, mas se movem. Como? Só Deus, ou os deuses do futebol, o sabem. Talvez daqui a alguns anos, os estudos sobre as nano partículas encontrem alguma explicação. Eu duvido.
Parece coisa de outro mundo, assombração ou feitiçaria, eu bem sei, mas contra fatos não há argumentos. Não é o que diz a sabedoria popular? Vamos a eles.
Jogadores como Ronaldinho Gaúcho, Lionel Messi, Zico, Maradona, Platini e, óbvio, Pelé, entre outros craques parecem ter a bola grudada aos pés. O resultado enche os olhos. Passes de precisão cirúrgica, cruzamentos na medida, dribles inacreditáveis e chutes indefensáveis. Méritos deles, óbvio, mas sempre com uma sutil colaboração de suas queridas musas, estas perdidamente apaixonadas por seus artistas.
Por outro lado, e sempre há um outro lado, detestam pernetas, caneleiros e os famigerados beques de fazenda. Para eles, jamais se oferecem como aos seus amantes. Não raro sua repulsa colabora para a ruindade dos perebas. Se colam nos craques, fazem o máximo esforço para desviar a trajetória dos pernas de pau e esses imperceptíveis movimentos podem transformar um chute, normalmente uma bicuda, ruim em uma monumental tragédia.
Entender a diferença da relação de uma bola de futebol entre um craque e um perneta é simples. Complicado é notar as nuances de amor e ódio com certos jogadores. O melhor exemplo, especialmente para nós, brasileiros, flutua na doce lembrança no tetracampeonato de 1994. Roberto Baggio acomoda a bola com aparente carinho na marca do pênalti, ajeita como quem deposita um bebê em seu berço. Se afasta alguns passos para, em instantes, correr de volta para desferir seu chute na cobrança do pênalti...
O resto é história.
O que pouquíssima gente sabe é que na fração de segundos entre a última passada e o golpe que deveria ser fatal, a bola se moveu alguns centímetros acima do solo, apenas o suficiente para o pé do italiano entrar muito embaixo do correto ponto de contato e fazer com que ela subisse demais, passando longe do gol de Taffarel como foguete em processo de decolagem. Foi a vingança de uma bola em nome de todas as suas irmãs. Por que? Sentiam-se humilhadas pelo jeito como eram tratadas por Baggio e alguns de seus companheiros. Entre os maus tratos recebidos, detestavam demais servir de cadeira para os italianos. Baggio, negará, se perguntado, mas costumava sentar nelas a qualquer momento do treino, sem o menor respeito.
Na final da Copa de 1994 ele descobriu que nada permanece impune ante a uma bola recheada de fúria.
Ah! Tem também o fato de a final ter sido contra o Brasil. E toda bola de futebol adora os jogadores brasileiros. Até os não tão bons assim (não existe brasuca ruim de bola) fazem de tudo para jogar o melhor que podem, e elas valorizam esse esforço.
Nessa altura alguém pode perguntar, mas e a Copa de 1998? E a derrota para a França? Basta dizer um nome: Zidane. Que bola não adoraria aquela elegante habilidade do francês. Ela não se intrometeu naquela final. Ganhou quem jogou melhor.
Voltemos a 2010 e a Jabulani. De todas as bolas já criadas, ela foi, talvez, a mais badalada. Se isso mexe com a cabeça das pessoas, imagine com a vaidade da estrela do esporte mais popular do planeta.
Quando veio a primeira crítica, às vésperas do início da Copa do Mundo da África do Sul, elas até relevaram. Afinal, veio de um goleiro, o único jogador que usa as mãos no esporte dos pés. Elas fogem deles mesmo para um breve e glorioso repouso nas redes sempre que podem. A situação azedou de vez quando o atacante Luis Fabiano fez coro nas reclamações.
Da mesma forma como não se sabe como é capaz de se mover, ninguém explica sua forma de comunicação. Mas existe uma espécie de telepatia esférica que as une e permite premiar ou punir jogadores e times ao seu bel prazer. Esse deveria ser o destino da Seleção Brasileira na Copa de 2010. Os desaforos teriam resposta. Mesmo com uma boa dose de contragosto, afinal amam os brasileiros, não se ofereceriam aos craques da camisa verde e amarela. Pelo contrário, fariam de tudo para desviar dos gols adversários e passar o mais distante possível das luvas de Julio César. No que dependesse das bolas, o hexa já era. Então surgiu Kaká. Bastou uma entrevista na qual elogiou a Jabulani, a qual viu nascer, pedindo para que tivessem paciência para atestar seu potencial, alguns afagos em seu couro e um bejinho, ou melhor dois, para dissipar as nuvens de tempestade entre os velhos conhecidos. Ninguém percebeu, claro, mas a Jabulani se derreteu toda, um leve arrepio percorreu seu corpo redondo e suas irmãs, como sempre, sentiram tudo. No mesmo momento o rancor evaporou de seus poros. O Brasil estava salvo.
Se a Seleção de Dunga vai trazer ou não o hexa para casa é outra história, mas a maldição da Jabulani ficou no quase graças ao craque conhecido tanto pelo habilidade em vencer jogos como em atrair os olhares das mulheres. A Jabulani, que é bola e, assim sendo, é do gênero feminino, não é de ferro e também não resistiu. Sorte do País do Futebol!

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